VICTOR AMADOR, O OLHAR E OS JOGOS
Abre-se o planisfério desta população, antes de mais, para
uma área de ócio, na perfeita paz, contemplada por essas raparigas e por essas
mulheres, que outro desejo não sofrem, além da própria presença. E admitamos
que resultam, com absoluta concordância sua, dos amplos terraços de Carpaccio,
persistindo no silêncio áureo, que lhes pontua a conversa, no brevíssimo afago,
que as prenda a vida, no ritual esquemático, que antecede o seu banho.
Mas eis que, desta revisita à hora da meditação, ascende
Victor Amador, por obra da dinâmica das antíteses, à nunca suficientemente
jubilar celebração dos jogos. E são as hirtas egípcias, tocadoras de gongo e de
pífaro, sábias invulgares do peso e do volume dos seus sons, a acrobáticas
cretenses, malabaristas do arco, saídas do terreiro arenoso de um enredado
palácio, os pintores e os artistas de percussão, as bailarinas e as executantes
de banjo, esgueirados todos da intimidade de um atelier, à beira-mar, sem os
anunciar, tudo e tudo sabendo, sem nada, nada dizer.
E, por detrás da passível multidão, na noite de lua-cheia,
traduzida por este demiurgo, Victor Amador, para anunciar suas sentenças, a
grande mátria se entroniza, irmã da dama de Elche, paramentada com as suas
rendas de luto, tão suave e tão quieta, tão maravilhadamente tenebrosa. A este
recinto, ao cabo de infindos medos, a trouxeram as mãos de um pintor de glória
caladas, a fim de que não nos defendêssemos das horrendas vozes, e
reparássemos, com ele, na história, uma vez desvendado, como agora, outro
sentido dos trabalhos e dos dias.
Mário Cláudio
Escritor
Maio 1993
O ROSTO DA VIGÍLIA
O risco que se corre quando se procede à
leitura de uma obra com o olhar limpo de interesses é apenas o de um gesto
pleno e consciente do risco. Sendo este
um tecido frágil de mil fios de dúvidas não resta senão um novelo fofo face ao
peso desse olhar que a coragem determina. Deste modo me vi um ano atrás perante
a exposição em Viana do Castelo de Victor Amador.
Tratava-se
de trabalhos alinhados por um retalho de datas a que faltava um conjunto
recente que melhor definisse um percurso. A decisão de acompanhar a posterior
pintura, na Granja, pôs-se por dois aspectos de importância a ver: a crença com
que nos últimos anos o pintor tem teimado no acto oficinal de pintar e o
isolamento em que vive, propício a uma atitude pessoal introspectiva que os
rostos, mais que as personagens, parecem querer desvendar.
Nestas
pinturas que as datas de execução aproximam, agora apresentadas na Galeria da
Praça, os rostos mantêm a força dos mistérios incapazes de se evolarem pela
transparência, até de se transmitirem, e no entanto carrega-os um mutismo
intencional gerador de queixumes surdos. Desde o início remoto que me foi
permitido ver, percorre toda a obra uma emoção aglutinadora de intenções que
escondem a energia obsessiva dum pulsar serenamente contido, obediente a um
ritual muito próximo à infância retida entre sonhos, ausências e silêncios. E
isto é constante em todos os quadros, onde os rostos geram um só rosto e o
rosto é o retrato da vigília do artista!
Uma vigília
que denuncia hirtos personagens sem mundos reais, que se nos aproximam para nos
estarrecer perante a incomunicabilidade oprimida pela ilha dos seus corpos,
agarrados às próprias teias, envoltos num mesmo enigma. Mesmo quando rasgam os
suportes para se equilibrarem entre cheios e vazios jamais deixam de se
enfeudar no magnetismo concentrado das suas angustias, a quererem libertar-se.
...Ora esfíngicas nos passos cadentes dum tango que não se dança, ora
acrobáticas em saltos e sonharem-se vôos desprovidos de asas, pra desafiadores
dum encantamento que nem as aprisiona nem se move... Personagens estranhas que
são indícios do indescritível, sopros de coisas vagas, tiradas dos baús do sono
para incomodarem e transgredirem os sentidos, num alerta mudo.
E sempre
presente, tela-a-tela, objecto-a-objecto, desenho-a-desenho o rosto da vigília,
que penetra o olhar do outro e se afoga em fundos que nenhum fragmento de manta
artesanal ou mancha colorida consegue distrair! Antes se encerra em si e se
desfecha sobre o outro, o provoca, o interroga, o intima! Obrigando-o a atentar
nas razões das janelas, dos arcos, das meninas, das flautas, dos cavalinhos,
das bolas de circo, ... quando já não é permitido à criança ser ingénua na
solidão dos sótãos!
Então
percebe-se que o perfume do risco perturbe o leitor e o fio de cabelo que o
liga ao juiz seja invisível.
Margarida
Santos
Escultora
Maio
1993
Manuel Dias da Fonseca
Ex-Vereador da Cultura
UMA ESTÉTICA DO SILÊNCIO
Muito jovem, Victor Amador integra as últimas licenciaturas em Pintura da Escola Superior de Belas Artes do Porto.
Figuras de olhar fixo de uma serenidade irremediável afirmam volumes marcantes numa total, porque desnecessária ausência de gestos.
Personagens-actores de um tempo (um lugar ?) sem particularismos inúteis aos quais o artista acentua, intencionalmente, um carácter adjacente de manifesta intencionalidade expressionista.
A paleta cromática nunca se uniformiza, utilizando o pintor a cor para afirmar nuances vibráteis, massas volumétricas ou contrastes de leitura sensorial e afectiva.
Atento aos valores da civilização contemporânea, Victor Amador viaja plásticamente pelos domínios do figurativo, abstracto, colagem da simbologia quotidiana, pela representação cubista, pelo realismo quotidiano ao nível da inscrição parietal de simbologia popular, pelo arabesco de pureza folclórica.
Aqui, a expressividade é marcadamente popular, estabelecendo um notável entendimento lúdico entre a cor, a vibração da paleta cromática e a leitura alfabética.
Quando o artista manifesta temáticas surrealistas, é através de um espaço tenso onde a cor não assume vibrações fortes, mas onde, e sempre, prevalece uma estética envolvente de silêncio.
Nas telas abstractas - como a de enormes proporções da colecção da Câmara de Matosinhos - o pintor afirma um gestualismo plástico de notável serenidade outonal feita, também de silêncios longos, mas onde se percebe sempre a esperança. Serenidade outonal delicadamente poética, sem exaltações, lírica, equilibradamente marcada entre o concreto e o imagético. Razão e emoção que na obra do jovem pintor se cruzam, sorvem, fruem e dignificam.
Victor Correia
Professor de História
Cabo do Mundo
30.6.1985
Platão escreveu que um filósofo deveria ser como uma criança, quer dizer alguém totalmente aberto à curiosidade e à experiência. Isto não significa que se marginalize o conhecimento e a reflexão, mas que informem uma interioridade caminhando na audácia e na aventura, rejeitando dogmas que ossificam.
O fascinante neste pintor é precisamente aquilo de que falava Platão que eu chamaria inocência. Victor Amador, no seu casulo em Matosinhos, próximo das árvores e das nuvens, transforma uma solidão em festa, em cores e formas violentas que podem parecer inconvenientes.
São, contudo, o nascimento mais escaldante, os azuis mais azuis, os vermelhos, os verdes, os amarelos sem vergonha de o serem, na sua total plenitude, para nos perdermos, para nos encontrarmos.
Ex-Vereador da Cultura
C. M. Matosinhos
1983
1983